A comida tem memória e coração
Aquele momento em que fechamos os olhos e os sabores percorrem todos os cantinhos da alma são tão poderosos, que elevam o acto de comer ao patamar de milagre. Porque se é a fé que nos salva, então é a comida que nos cura.
Original para o blog

Alimento a teoria que existe uma veia que liga diretamente o estômago ao coração sem passar pela razão. Uma ligação tão intensa e forte que sustenta a minha convicção de que um Polvo à Lagareiro seguido de pão-de-ló de Ovar é capaz de provocar tantos arrepios como um golo da selecção ou uma medalha nos jogos olímpicos. Aquele momento em que fechamos os olhos e os sabores percorrem todos os cantinhos da alma são tão poderosos, que elevam o acto de comer ao patamar de milagre. Porque se é a fé que nos salva, então é a comida que nos cura.
Comida é conforto, é um lugar, uma viagem, uma pessoa. É uma panela a transbordar de afeto para quem souber apreciar e receber. A minha avó fazia as melhores torradas do mundo com a particularidade de que o pão era sempre do dia anterior. Ela cheirava a café Christina, bolacha maria, mel e manteiga das marinhas a derreter devagar, tão devagar como aquele tempo. As suas íris de azul profundo luziam de felicidade ao ver-nos repetir, mesmo que para ela estivéssemos sempre desnutridos. Procuro reproduzir aquela mistura repleta de ternura, na tentativa vã de preencher a minha fome de saudade. É inútil. Os ingredientes são despretensiosos mas vão sempre faltar as mãos brancas e duras, a toalha de renda e a luz ténue das tardes longas.
Presumo que o vosso pensamento já voou para o colo das vossas velhinhas e paira agora sobre aquele queijo da serra que derrete no céu da boca ou tem na mira um prato de amêijoas à Bulhão Pato a estalar de tão fresco. E um corneto no final de um dia de praia? O chocolate que lambemos dos dedos que ainda sabem a mar, a baunilha que faz melodia quando se trinca...mas não é um gelado apenas? Claramente que não. Podes comprar um bem mais requintado em Copacabana ou na Venice Beach, mas estará sempre aquém daquela recompensa na Granja, com os pés enterrados na areia, os cabelos molhados e os sonhos ao pôr do sol. É a riqueza de quem tem memórias que se colam como caramelo, lembranças tão presentes, tão físicas, palpáveis, que confundem os sentidos, resistem para além dos amarelados livros de receitas e que nos dão ânimo para passar esta herança aos que de nós dependem.
Pela comida manifestamos sentimentos difíceis de verbalizar, onde as palavras não chegam. É por isso a minha mãe há-se ser sempre amor em tupperwares, os amigos são uma mesa de tapas e a família é bacalhau na brasa à sombra de uma videira. Cozinhar é uma expressão da estima que temos pelo outro, uma forma despojada de agradar, é um recado escrito em ponto de rebuçado, onde se lê: "Gosto de ti, lembrei-me de ti, quero-te bem.".