Blog da Dona do seu Nariz

Quando o filho do jardineiro José e da cozinheira Dolores nos hipnotiza em cada livre com uma bola, quando a menina Cristina Maria deixa a banca da feira para ser acionista de uma estação de televisão ou quando um calceteiro aspira a ser Presidente da República, estão a colocar o mundo ao contrário ou talvez do lado certo.
Falta-nos a coragem e a energia. Mas mais do que isso, falta-nos a dor dos outros. Por maior que seja a nossa compaixão, nunca saberemos, porque não estivemos lá, no lugar onde os outros sofrem.
Há relações menos íntimas e mais ausentes, mas teimamos em vedar-lhes o acesso à nossa casa porque nos ensinaram a colocar as pessoas em gavetas estanques, como se o nosso coração tivesse de ser fragmentado em prateleiras e a amizade não se pudesse multiplicar.
Malabarista, coach nutricional, instrutor de surf, gamer, terapeuta holístico: tudo isto aceitamos como sensato, perfeitamente possível e altamente entusiasmante. Talvez por já não termos conhecido um trabalho para a vida, por sabermos que a mudança é algo bom que confere experiência, porque somos adultos multitasking.
Fomos todos condescendentes na avalanche de excursionistas low-cost por ser economicamente proveitosa, embora ambientalmente insustentável e humanamente penosa. Também nós embarcámos nestas fast trips, de duas horas de voo sem malas de porão, meia dúzia de selfies e uma colecção de ímanes no frigorífico.
A consciência que nada prevemos, dominamos ou quase nada decidimos, determina o nível de coragem com que encaramos os riscos, seguimos por atalhos e repetimos lengalengas seguras como mantras.
Quantos lol vale uma gargalhada? Confesso que desconheço por ignorância. O que lhes podemos desejar é que tenham muitos motivos para sorrir até contorcer a barriga e doerem-lhes os maxilares.
Não espere tirar grandes lições nem alcançar enormes feitos. Não se obrigue a mudar, a ser melhor pessoa, a ter mais paciência, a fazer o que não foi feito. E cuide-se para os dias bons que vão chegar.
Onde vou deixar as crianças? Será melhor fazer as compras online? E as férias no Algarve? Está o Estado preparado para cuidar de mim? Melhor ir a pé do que de metro. Pelo caminho compro uns enlatados.
O diferente quis ser tão diferente que ficou comum e a cultura passou a consumo. A saudade é a marca registada de Portugal, uma tristeza tão nossa que nos dá o direito de a exportar, como se fosse um valor transacionável na bolsa mundial da alegria.
São assim os que se querem bem. Vivem as nossas alegrias sem lhes sugar o sabor, as nossas vitórias sem delas se apoderarem e carregam no coração os nossos dias mais escuros. Chamam-se amigos e vêm de todas as formas.
Não há acidente que justifique a malignidade deste crime. Não há argumentos que diminuam a sua crueldade, a sua bestialidade. Simplesmente porque não há razão. Se nos apegarmos a provas e indícios que possam minimizar a culpa, estamos a diminuirmo-nos como pessoas. Não nos podemos permitir.
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